A
Bíblia, a hermenêutica e a desconstrução



Todo mundo sabe que
a Bíblia é considerada o livro mais lido e mais influente do planeta, tendo
vendido mais de 5 bilhões de cópias nas quase 7 mil línguas conhecidas, desde a
sua primeira impressão em 1454 na oficina de Johannes Gutenberg,
em Mainz, na Alemanha.
A
palavra grega biblia (τὰ βιβλία) significa simplesmente livros, aludindo à
coletânea de 24 livros da Bíblia Hebraica (Tanakh,
acrônimo para Lei, Profetas e Escritos,
em hebraico: Torah, Neviim, Ketuvim תורה
נביאים וכתובים
), chamada pelos cristãos de Antigo Testamento, que, além do cânone judaico
(agrupado em 39 livros), também adotam os 27 livros do Novo Testamento
(Evangelhos, Atos, Epístolas e Apocalipse), sendo que a Bíblia católica
compreende um total de 73 livros e a Bíblia protestante, 66
(excluindo
os chamados apócrifos).
A
controversa autoria dos escritos bíblicos e a grande diversidade de seus
gêneros literários, conteúdos e significados corroboram a interessante ideia de
uma canonicidade fluida, influente e constantemente revisada, sedimentada e
consolidada, como a que tem sido desenvolvida em literatura comparada por
Harold Bloom, situando a Bíblia, juntamente com a Ilíada e a Odisseia de
Homero e a Eneida de Virgílio, na
base de formação de um verdadeiro cânone ocidental. Livro sagrado do judaísmo e
do cristianismo, muitos o considerariam hors
concours justamente por tais peculiaridades. Como esse foi o primeiro livro
que comecei a ler quando criança, eu não hesitaria em escolhê-lo como um dos
mais representativos da experiência humana da leitura, oralidade, escrita,
compreensão, imaginação, criatividade e socialidade. Um velho professor de
Oxford, Donald Drew, costumava dizer que se Deus não existisse, devíamos crer
em Shakespeare, tamanha era a dívida deste para com o universo tragicômico e o
imaginário dramático das estórias, narrativas e construções poéticas da Bíblia.

Na
mesma esteira, Dante, Cervantes, Milton, Rabelais e Goethe apenas iriam
consolidar a formação de um cânone moderno, como o sugeriu Bloom. Todavia, ao
invés de descartar autores e leituras marginais como Bloom fez com relaçãoo aos
pós-modernos e pós-estruturalistas de uma certa filiação ressentida (School of Resentment), eu acredito que
os infindáveis conflitos de interpretaçõees, escolas de hermenêutica e de
desconstrução associados a diferentes recepções da Bíblia pelas mais diversas
tradições judaico-cristãs apontam para um rico e complexo mosaico de pluralismo
cultural, abrangendo não apenas as leituras tradicionais e ortodoxas, mas
também as mais heterodoxas e antagônicas, inclusive as dos chamados mestres da
suspeita (Marx, Nietzsche e Freud) e seus epígonos e críticos contemporâneos
-- como Ricoeur, Foucault, Levinas, Derrida, todos grandes leitores da Bíblia.



Com
efeito, para Jacques Derrida, a desconstrução desvela múltiplas leituras
estratificadas e as reconfigura segundo diferentes programas (mais ou menos
ortodoxos, conservadores, reformistas ou radicais) de interpretação, como já o
faziam escribas, rabinos, talmudistas e cabalistas judeus.



Assim,
a Bíblia Hebraica e a Bíblia da teologia cristã concebem um desenrolar
histórico da criação, da redenção e da revelação divinas inseparável dos
atributos pessoais de um Deus transcendente, mas correlato à existência humana,
ao mundo e ao Outro que lhes são imanentes. Podemos estabelecer, assim, uma
correlação hermenêutica entre a revelação bíblico-teológica e a autocompreensão
fenomenológico-existencial (de nós mesmos, de nossas comunidades e de nossas
tradições). Na teologia judaica, pode-se falar de uma lei escrita (Torah) e de uma lei oral da revelação (Halacha, Talmud, Gemara, Mishnah).
Segundo a teologia cristã, pode-se falar de uma revelação geral ou natural (a
lei natural e as leis da natureza) e de uma revelação especial ou direta (a Lei
Divina que Deus teria comunicado a Moisés, a Incarnação de Jesus Cristo, a salvação
e os mistérios da fé).



Posições
mais ou menos ortodoxas do Judaísmo e do Cristianismo lidam diferentemente com
o problema da revelação em seus pressupostos (milagres, o sobrenatural, a
natureza divina) e suas implicações (historicidade, a recepção dos escritos bíblicos,
a articulação entre razão e fé, conhecimento e crenças compartilhadas). Se a desconstrução é uma "hermenêutica radical" (John Caputo)
ou "a hermenêutica da morte de Deus" (Mark Taylor), em todo caso a
desconstrução de conceitos onto-teo-lógicos, essencialistas ou substancialistas
do Deus da metafísica tradicional nos revela um horizonte de alteridade do
Todo-Outro (Wholly-Other, Tout-Autre,
Ganz Andere) no nosso encontro com o outro, o próximo, o pobre, o
estrangeiro, o órfão, a viúva. Se as 613 mitzvot (prescrições) do judaísmo devem
ser tomadas literalmente ou se podem ser sintetizadas em 10 mandamentos
(Moisés) ou em 13 princípios diretrizes (Maimônides), a Lei do Amor ou a Regra
de Ouro traduz no Shema e nos ensinos
de Hillel e Jesus a ética da reciprocidade: "Não fazer a outrem o que não
queremos que nos façam" e "fazer aos outros o que queremos que nos façam". O
universalismo irrompe dentro do próprio particularismo da Torah,
originariamente concebida para o povo de Israel. A aliança divina é universal,
como nos revela a estória de Noé, cujas Sete
Leis se resumem a proibir a idolatria (não apenas de falsos deuses, mas
sobretudo do orgulho, da auto-justiça e do fundamentalismo), o assassínio, o
roubo, a imoralidade, a calúnia e o maltrato de animais e a promover sistemas e
leis de honestidade e justiça. Nada mais apropriado para uma nação que, apesar
de sua gênese judaico-cristã, passou nos últimos 4 anos pela pior crise ético-moral desde que se
reiniciou um processo de democratização há três décadas: por exemplo, reconhecer
que nenhum magistrado ou parlamentar está acima da Lei, cuja universalidade e reciprocidade
se estendem igualmente a todos, assim como todo trabalhador é digno do seu
salário (mas quem não trabalha, não come!) Em última análise, segundo Derrida, nossa
obrigação de reciprocidade e alteridade não seria como um dever formal ou
imperativo categórico, mas antes como uma esperança sem messianismo inexequível
ou como um messianismo utópico sem calvário redentor. Afinal, o que é próprio
ao ser humano, aquilo que lhe é devido --a Bíblia nos ensina-- não poderia ser
jamais redimido por um suposto cálculo civilizatório da história universal. A
alteridade de nossa humanidade significa, portanto, a impossibilidade de
resgatá-la, de uma vez por todas, pela mera codificação de sua universalidade.



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PDF version: "Towards a Phenomenology of Liberation" (APA Newsletter Fall 2010)
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