Nythamar de Oliveira, PUCRS / CNPq
1. A celebrada emergência da
economia brasileira no cenário mundial, hoje, coincide com uma longa e profunda
crise do capitalismo global, assim como a consolidação de nossa democracia
constitucional coincide com os mais complexos desafios normativos do Estado de
Direito e de modelos tradicionais de desenvolvimento nacional e regional. Na
medida em que eventos tão complexos quanto contingentes resistem a grandes
narrativas explicativas, limitar-me-ei a tentar descrever o que parece suscetível
de descrição, densa e empiricamente embasada, assinalando a tarefa inacabada de
dar nome aos fenômenos sociais em via de transformação, iniciando com a própria
ideia de modernidade, suas patologias sociais e seus sintomas de decadência,
crise e superação. Com efeito, o próprio Fundo Monetário Internacional demorou
bastante para acatar a presente definição da "grande recessão" global
como tal, após explícita relutância em aquiescer a análises, diagnósticos e
prognósticos de economistas, investidores, cientistas sociais e politólogos dos
mais variados segmentos e matrizes ideológicas do mundo inteiro.[2]
Desde um ponto de vista meramente descritivo, observa-se que as desigualdades
socioeconômicas atingiram nos últimos anos –especialmente, a partir do estouro
da chamada "bolha da Internet" (dot-com
bubble) em 2001, da crise dos subprimes
(2006-07) e da crise econômica global de 2008— um patamar sistêmico semelhante
ao do crash de 1929, mas de
proporções muito mais alarmantes e aberrantes, justamente por causa de seus
efeitos globalizantes no mundo do trabalho, da produtividade e da reprodução
social. Na minha modesta contribuição, contentar-me-ei em tecer algumas breves considerações
de ordem normativa nesse terceiro aspecto –do mundo social—, onde se criam e se
fomentam reivindicações normativas a partir de crenças, valores e normas
compartilhados por indivíduos e grupos sociais em suas práticas e ações
cotidianas, geralmente de forma irrefletida ou pré-teórica. Numa perspectiva
filosófica, o grande problema da normatividade consiste em se questionar por
que e como devemos buscar mudanças no
mundo social –regional e global: afinal, por que e como transformar o mundo? O
desafio normativo de toda filosofia política e social ecoa, decerto, as palavras
do jovem Marx na conhecida décima-primeira tese sobre Feuerbach: "Os
filósofos têm apenas interpretado o
mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo."["Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert, es kömmt drauf
an, sie zu verändern"][3] O
fenômeno da reprodução social, seguindo as intuições seminais do jovem
Marx, longe de ser um motivo quimérico de escamoteamento das relações sociais e
de suas raízes infraestruturais em interesses econômicos dominando as forças
produtivas, terminaria por subverter leituras funcionalistas que relegavam
questões de normatividade a uma ideologia, cosmovisão ou codificação cultural
da superestrutura, sobretudo depois que as leituras estruturalistas de Louis Althusser
suscitaram as críticas fulminantes de neomarxistas da chamada Escola de
Frankfurt e da New Left nos anos
setenta –notadamente, Habermas e Thompson.[4]
Decerto, o problema de "resolver" todas as contradições inerentes aos
complexos processos históricos em suas configurações socioeconômicas através de
uma suposta teoria "científica" que liquidaria de uma vez por todas
com suas incoerências práticas e ideológicas foi sepultado com o próprio
"materialismo dialético" (termo que, de resto, nunca foi utilizado
por Karl Marx) celebrado pelos antigos teóricos comunistas e arautos do fim da
história: as contradições concretas seriam misteriosamente
"resolvidas" pelas superações dialéticas da história. Interessantemente, foi nesse mesmo contexto
geopolítico-teórico de Guerra Fria –quando europeus discutiam modelos
democrático-socialistas alternativos ao capitalismo americano e ao comunismo
soviético— que uma verdadeira corrente de "teoria crítica" se opôs na
América Latina a modelos de desenvolvimento econômico impostos pelos EUA,
passando pelo programa desenvolvimentista de redução das desigualdades
regionais, iniciado pela Cepal e liderado por Celso Furtado, nos anos 50 e 60,
e culminando com o movimento liberacionista (liberación, em oposição ao desarrollo
imperialista) no final dos anos 60 e décadas de 70 e 80, com a irrupção das
comunidades eclesiais de base, da opção preferencial pelos pobres e com a
emergência de um novo paradigma capaz de dar conta de novos problemas e
movimentos sociais, desafiando ditaduras militares e regimes autoritários.(Oliveira,
2002) Na medida em que o Brasil
atravessava, de 1964 a 1985, mais de duas décadas de ditadura militar, foi sobretudo
a partir dos anos 70 que um debate público se consolidou no País, em torno de
recepções liberais, marxistas, socialistas e libertárias de autores como
Gramsci, Lukács, Habermas, Bobbio, Rawls, Chomsky e Nozick. Assim, eram
retomados conceitos fundamentais de filosofia política, tais como democracia,
justiça, autonomia e igualdade, que eram ressignificados e contextualizados em
nossa realidade social de desigualdades, situando-os com relação aos aportes das
diferentes correntes da teoria da dependência –estruturalista, marxista e
terceira-via—, respectivamente representadas por Celso Furtado, Theotonio dos
Santos e Florestan Fernandes (em cuja escola emergiam também os primeiros
trabalhos de Fernando Henrique Cardoso).( Kay, 1989) De resto, pode-se evocar
ainda os aportes marxistas de pensadores como Raymundo Faoro, Helio Jaguaribe,
Alvaro Pinto e Nelson Werneck Sodré, para além das análises fundadoras de
Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda sobre o processo civilizatório
luso-brasileiro, com o fito de esboçar a formação de uma identidade nacional e a
recepção liberacionista da teoria crítica, especialmente da utopia social de
Bloch e Marcuse, em pensadores como Rubem Alves, Augusto Boal, Paulo Freire e
Leonardo Boff. Se as análises comparativas são desejáveis e inevitáveis em
estudos sobre desenvolvimento regional e governança, creio que podemos também evocar
a tradição francesa da antropologia econômica, cuja dimensão normativa é
saliente, ao lado das análises socio-econômicas descritivas, na reconstrução
dos modos de produção tradicionais, pré-modernos, em regiões subdesenvolvidas
do Brasil e suas contradições manifestas em descompasso com as estruturas de
mercado vigentes e as formas periféricas de produção do modelo a ser superado –especialmente,
como fornecedor de matéria prima. A recusa das análises de reprodução social em
termos de periferia-centro toma como pressuposto uma estrutura social densa, de
forma a compreender não apenas os complexos mecanismos de socialização e
reprodução social, mas também as estruturas econômicas de mercado, de relações
socioeconômicas e seus processos civilizatórios. Segundo Jessé Souza, "Os aspectos estruturais
que interessam a Elias para a explicação da transição da sociedade tradicional
para a moderna, têm basicamente uma dimensão sócio-econômica por um lado e política
por outro. Na dimensão sócio-econômica temos como fundamental, como em Georg Simmel
e Karl Marx, a intensificação da divisão social do trabalho e o advento da
economia monetária. Na dimensão política temos uma leitura muito pessoal de
Elias (apesar de lembrar Max Weber em vários aspectos essenciais) do processo
de centralização política a partir do advento do estado nacional".(Souza,
2001, 117) 2. Acredito, outrossim, que a
análise do ethos democrático
brasileiro passa necessariamente pelo problema normativo da modernidade, o qual
se revela em última instância um verdadeiro paradoxo: se por um lado nunca
fomos modernos –na medida em que nunca tivemos uma experiência revolucionária
nem liberal consumadas— e a modernidade teria sempre de ser tomada como um
projeto inacabado, nos termos propostos por Habermas, por outro lado, as
contradições e inconsistências do modo de ser brasileiro, notadamente o nosso
"jeitinho", parece favorecer uma condição pós-moderna, às vezes até um
cinismo de vale-tudo ou de uma celebração irresponsável da impunidade e da
falta de seriedade em todos os arranjos sociais que desafiam o regramento e a
própria ideia de normatividade. A tentação de saltar por cima da própria
sombra, afirmando uma suposta "condição pós-moderna" sem ter levado a
cabo uma experiência concreta de "modernidade" –nos termos weberianos
e iluministas de racionalização e emancipação—, me parece pouco adequada para
expressar a nossa autocompreensão crítica de sociedade patrimonialista,
paternalista e cordial, atravessada por mitos e autoenganos coletivos como a
"democracia racial" e as diferentes versões do "ufanismo
nacional" e seu autoritarismo sistêmico. Durante a ditadura, ao contrário,
os movimentos de resistência e protesto contra o regime militar recorriam a
metáforas e representações de liberdade, igualdade e solidariedade em um espaço
utópico, um não-lugar, numa sociedade a ser vivenciada e cultivada pela
experiência transformadora ou revolucionária que desafiava o status quo a ser refutado. Parafraseando
Bloch, buscávamos então um espírito coletivo de um ethos social compartilhado que "nós" brasileiros ainda
estávamos por nos tornar, "nós" que não nascemos ainda para a nossa
utopia social, a qual ainda estava sendo construída no presente, desafiando a
cristalização do passado e expandindo os horizontes utópicos de um futuro mais igualitário e
justo.[5]
Essa busca incessante é a mesma, de resto, que desde a República de Platão até a Utopia
de Thomas More e os seminários de Michel Foucault no Collège de France sobre a
governamentalidade, os filósofos, visionários e pensadores políticos têm postulado
como governança ideal, um kybernein mais
justo e mais igualitário, como forma mais razoável de governar e ser governado
em horizontes utópicos. Os desafios normativos para exercer governança e
legitimar o controle social sempre acompanharam as análises de desigualdades
presentes nas diferentes configurações de poder e vida social, sobretudo a
partir de autocompreensões modernas dos fenômenos sociais. Lembramos, en passant, que a metáfora platônica do
timoneiro atribuída ao governante no Livro VI da República (488a-489d) já antecipa o problema contemporâneo da
governança, na medida em que o "governar", kybernein, não se limita apenas ao monarca ou aos que integram o
governo, mas procura demarcar uma expertise,
know-how ou savoir-faire própria dos que sabem governar melhor ou que seriam os
mais aptos a exercer a governança ou, segundo a ilustração, a conduzir o navio
(por analogia, o Estado-nação). A ideia de que filósofos-reis ou reis-filósofos
seriam os melhores governantes termina, decerto, por favorecer uma concepção
aristocrata e mesmo elitista de governança, uma verdadeira
"epistocracia", como poder dos que detêm o conhecimento (episteme), segundo a feliz análise de
David Estlund (2008). Com efeito, todos os argumentos e desenvolvimentos
históricos em prol de uma ideia mais democrática, igualitária, participativa e
deliberativa de democracia combateram esse dogma platônico, mas também
engendraram crises inerentes aos próprios processos deliberativos, sobretudo em
nossas concepções liberais de democracia procedimental. Segundo Estlund, desde
um ponto de vista estritamente epistêmico, a autoridade de um governo se mostra
legítima quando toma decisões corretas de acordo com padrões cognitivos
(técnicos, científicos etc) que independem de um procedimento da justiça. Por
outro lado, uma justificativa puramente procedimental da democracia afirma, ao
contrário, que a democracia afirma a autoridade legítima porque suas decisões
são procedimentalmente justas. Assim, a democracia exerce uma autoridade
legítima em virtude de possuir um poder epistêmico modesto: suas decisões resultam
de procedimentos que tendem a produzir leis justas de forma melhor e mais
segura do que as que resultam do acaso ou contingência, e melhor ainda do que
qualquer outro tipo de governo que seja justificável nos termos equitativos da
razão pública. É assim que a ideia de equidade (fairness) tem sido desenvolvida na filosofia política da justiça
democrático-liberal, sobretudo depois que Rawls formulou sua concepção política
de "justiça como equidade" (justice
as fairness).(Rawls, 2003; 2008) O pensamento
político-filosófico de Rawls pretendia, em suma, argumentar por uma defesa
racional da democracia liberal em termos de uma razão pública, ou seja, com
argumentos e critérios que pudessem ser pública e consensualmente estabelecidos
na elaboração de uma sociedade mais justa, mais equitativa e mais igualitária.
As sociedades democráticas contemporâneas (incluindo as republicanas e as
monarquias constitucionais) se aproximam de uma sociedade idealmente justa (o
que Rawls chama de "sociedade bem ordenada") na medida em que
subscrevem a princípios equitativos de justiça que seriam escolhidos pelas
partes contratantes numa "posição original", onde se estabelecem tais
procedimentos equitativos para se chegar a uma ideia de justiça social.
Trata-se de uma justiça procedimental pura e não perfeita (ao contrário, por
exemplo, do exemplo clássico da divisão "perfeccionista" de um bolo,
onde quem corta as fatias e as distribui deveria ficar com a última), na medida
em que não se tem conhecimento de vantagens ou privilégios particulares
(neutralizados, portanto, pelo "véu de ignorância"). Concepções
ético-políticas de justiça em autores clássicos, como Platão, Aristóteles e
Cícero, e em autores modernos, tais como Bodin,
Grotius, Hobbes, Locke, Rousseau, Mill, Hume,
Kant e Hegel, seriam destarte revisitadas, depois dos trabalhos seminais de
autores como Rawls e Habermas, em formulações reconstrutivas de suas
respectivas teorias da justiça. Segundo Rawls, os bens primários a serem
equitativamente distribuídos seriam aqueles que todo ser humano moral e
racional almejaria, e que poderiam ser aglutinados em listas minimalistas de
bens tais como inteligência, imaginação e saúde (bens primários naturais) e
direitos civis e políticos, liberdades, educação, renda e riqueza, as bases
sociais do auto-respeito (bens primários sociais). Aqui mesmo no Brasil, em quase
todo período eleitoral, vemos repetidamente candidatos defendendo suas
plataformas político-partidárias propondo maiores investimentos públicos em
educação, saúde, transporte, segurança e criação de postos de trabalho,
demarcando um certo programa de justiça distributiva, delimitando as esferas
distributivas, de forma a que determinados bens sociais não predominem sobre outras
necessidades básicas das sociedades, seguindo as suas peculiaridades e evitando
os monopólios que terminam por extrapolar as suas fronteiras de domínio, com a
justificativa de supostamente implementar a justiça social. O problema, bem
conhecido de todos cidadãos, continua sendo o dos monopólios políticos e
econômicos, que acabam por dominar e direcionar a distribuição de tais bens
primários. Assim, interesses meramente econômicos são facilmente aliados a
interesses de quem detém o poder político e raramente coincidem com uma ideia
equitativa de democracia participativa, deliberativa e inclusiva ou suas
reivindicações normativas em favor de um desenvolvimento sustentável. O nosso
grande desafio normativo pode ser assim formulado: como fomentar o crescimento
econômico sem comprometer um projeto de desenvolvimento sustentável? Para
muitos ambientalistas e ativistas de esquerda isso seria simplesmente
impossível, porquanto os parâmetros de eficiência, utilidade e racionalidade
que embasam os problemas de teoria dos jogos, mesmo quando cotejam variáveis de
cooperação versus competitividade,
terminam por favorecer uma racionalidade instrumental (segundo Habermas,
indiferente ou oposta a uma racionalidade comunicativa) e a engenharia social
tende a seguir uma lógica neoliberal perversa de exclusão social. O que
precisamos, hoje mais do que nunca, é reconciliar em nossas democracias uma
racionalidade participativo-deliberativa com uma racionalidade teleológica, de
forma a garantir a competitividade almejando resultados eficientes com inclusão
social, equidade e igualitarismo. Nas palavras de Estlund, "Meu
argumento neste livro não é que uma forma democrática de governo seria
epistemologicamente melhor do que todas as alternativas. Pelo contrário, é que
a democracia será a melhor estratégia epistêmica entre aquelas que são
defensáveis em termos que são geralmente
aceitáveis. Se houver epistemologicamente melhores métodos, eles
são muito controversos entre os pontos de vista qualificados, não apenas os
pontos de vista, para fundamentar a lei legitimamente imposta. A exigência de
aceitabilidade, portanto, desempenha um papel crucial no argumento de
procedimentalismo epistêmico". (Estlund, 2008, p. 42) Esse tipo de argumentação
conjugando autoridade epistêmica e legitimidade institucional, numa comunidade
política real, concreta, é de suma importância para a construção de nossa
democracia de forma mais eficiente e participativa. Com efeito, a sociedade
civil continua reivindicando mais transparência, justiça social e investimentos
em educação, saúde, transporte e segurança públicos e de qualidade. As reformas
políticas e institucionais de que precisamos hoje no Brasil passam todas pela
renovação das legislaturas, governantes e representantes idôneos da nossa
imatura democracia e pela formação de quadros, trazendo gente qualificada para implementar
as políticas eficientes de desenvolvimento regional, substituindo os não raros
servidores incompetentes que ocupam cargos públicos graças a favores
fisiológicos, locais ou nacionais, de caudilhos, coroneis e oligarcas do
sistema patrimonialista luso-brasileiro. A ideia de "autoridade
epistêmica" é diametralmente oposta ao autoritarismo que guiou os
interesses governistas do Brasil desde a sua colonização até o final da
ditadura militar, na medida em que o poder moral de um agente como o Estado
exige ou proíbe ações de forma racional normativa, ou seja, segundo uma ideia de
razão pública –que pode ser contestada ou desafiada por qualquer cidadão ou
grupo social que se sinta discriminado ou tratado de forma arbitrária,
não-racional. O que parece trivial aos olhos de um europeu ou americano com
maior vivência democrática é que governantes, parlamentares ou algumas
autoridades em nosso País ainda gozem de um status
diferenciado, como se estivessem acima da lei ou imunes à força normativa da
lei e sua universalizabilidade (a mesma lei deveria ser supostamente válida
para todos). Daí decorre a atual crise de legitimidade de nossa democracia
representativa: não é apenas a representatividade como tal que está em xeque
mas sobretudo a maneira como ela é exercida. Segundo Estlund, a legitimidade
traduz a permissibilidade moral do Estado quando legisla, julga e executa através
de seus ordenamentos e instituições em conformidade com os processos e
procedimentos que produziram tais normas, sempre embasados na
constitucionalidade. Assim, a legitimidade da tributação é correlata à
autoridade dos impostos que somos moralmente obrigados (não apenas
politicamente e juridicamente obrigados) a pagar, na medida em que direitos e
deveres são correlatos a cidadãos e instituições. Ora, o tecido social
brasileiro foi danificado e enfraquecido através de séculos de autoritarismo:
mesmo com a paulatina transição para democracia no início dos anos 1980, ainda
hoje experienciamos as sequelas e desigualdades regionais decorrentes de
práticas patrimonialistas, populistas e paternalistas. A constante busca de
autocompreensão da nossa realidade política e social, para além das desgastadas
discussões sobre uma suposta identidade nacional ou uma cultura política
monolítica, favorece ainda o debate público em torno de temas como processos de
aprendizagem da democracia e políticas públicas deliberativas, de forma a
reformular os déficits normativos da antiga sociologia marxista e da teoria
crítica da primeira geração (Adorno, Horkheimer, Marcuse), que já foram
amplamente explorados durante o regime militar, sobretudo pela esquerda e por
movimentos de libertação, propiciando
uma nova problematização da normatividade em busca de justificativas para a
ação racional que visa a promoção do bem comum. Assim como Giannotti
introduzira com justeza a metáfora do contrato como jogo social de linguagem e
Brum Torres consagrara a chamada "lei de Gérson" ("levar
vantagem em tudo") como parte integrante de um modus vivendi comum a políticos e cidadãos em nosso ethos social, Nelson Boeira argumenta de
forma convincente em favor da formulação autóctone de uma concepção pública de
deliberação e processos decisórios para a implementação de políticas sociais e
procedimentos na administração pública.[6]
Assim, podemos revisitar o ethos
social brasileiro à luz de intuições contratualistas em "equilíbrio
reflexivo" (Rawls) e na reconstrução pragmático-normativa de uma teoria
crítica (Habermas), reformuladas para viabilizar uma abordagem contextualizada
que parte de uma situação concreta de desigualdades e conflitos
socioeconômicos, com o desideratum de
eventualmente integrar questões normativas com os complexos problemas do "eu"
e da identidade pessoal coletiva ("nós brasileiros") num mesmo nível
de argumentação justificatória. O nosso problema continua sendo, de resto, o de
justificar em termos normativos a formulação de critérios procedimentais,
embasados em nossa complexa realidade social e que sejam capazes de implementar
medidas justas que contribuam para tornar a nossa sociedade mais igualitária e
mais equitativa. Tanto para Rawls quanto para Habermas, permanece o grande
desafio de articular teoria e prática, dada a dificuldade –para muitos, a
impossibilidade— de colocar em prática o
que Rawls chamou de "pluralismo razoável" ou de um "agir
comunicativo" sem distorções ou manipulações de uma das partes –segundo a
ideia habermasiana de "situação ideal de fala". (Oliveira, 2012) 3. Como aponta Carlos Brandão,
na origem do próprio conceito cepalino de desenvolvimento em pensadores como
Celso Furtado, também encontramos essa premissa inicial de que, seguindo as
intuições seminais de seu mentor intelectual François Perroux, "o mundo
econômico é atravessado por tensões de relações de forças desiguais". Para
o autor de clássicos como Pequena introdução ao desenvolvimento (1980),
trata-se, em última análise, de "lograr transitar da racionalidade com
respeito aos meios (instrumentos) para a racionalidade com respeito aos fins
(valores substantivos)", de forma a romper com modelos que reduzem o
desenvolvimento a uma lógica capitalista de acumulação, resgatando a força
normativa da criatividade e da imaginação transformadora sustentáveis.(Brandão,
2012, 309) Essa tensão constante entre campos de forças concretas, em meio a
lutas pelo reconhecimento, e campos de reivindicações normativas por mais
igualdade, justiça e equidade, foi traduzida por Habermas como uma tensão
irresolúvel entre abordagens abstratas da moral e uma concepção concreta
do ethos democrático. Com
efeito, partindo da intuição marxiana de contrapor as "tensões de relações
de forças desiguais" entre forças produtivas –analisadas em termos
econômicos concretos, infraestruturais—, em contraposição aos efeitos
superestruturais ideológicos das relações entre trabalhadores e os detentores
dos meios de produção que seriam teorizados de forma abstrata, podemos seguir
Habermas em sua releitura crítica do funcionalismo marxista, via Max Weber, retomando o movimento na
direção do abstrato para o concreto (vom
Abstrakten zum Konkreten), na medida em que o grau de concreção a ser
alcançado será tanto maior quanto mais internalizada pelo sistema for a
perspectiva de tal apresentação, inicialmente externa: os direitos com que os
cidadãos devem se reconhecer mutuamente na medida em que regulam legitimamente
formas compartilhadas do mundo da vida –o que se dá, inevitavelmente, por meio
do Direito positivo.(Habermas, 1998, 135-151) Assim, podemos partir de
análises concretas de desigualdades socioeconômicas que assolam nosso País e
dificultam o desenvolvimento regional, ao mesmo tempo em que levamos em consideração
as reivindicações normativas da sociedade civil, nos mais diversos segmentos e
setores da vida social, desde os movimentos sociais, protestos estudantis e
manifestações populares até os encaminhamentos de petições, mobilizações e
denúncias através de organizações não-governamentais, redes sociais e da mídia
impressa, telecomunicativa e digital. Neste sentido, o Brasil vive um grande
momento, de grandes oportunidades em meio a tantas crises, tensões e
contradições: com um acesso cada vez maior aos meios de comunicação, o povo
pode assumir de forma mais desimpedida um distanciamento crítico com relação a
estruturas tradicionais de apadrinhamento social, cultural e ideológico,
sobretudo na medida em que adquire uma maior autonomia política e com maior acesso
à massa crítica na esfera pública. Apesar dos currais eleitorais, das
distorções manipuladoras e das deficiências cognitivas deliberadamente impostas
pelos grupos mais retrógrados vinculados a interesses oligárquicos da velha
ordem patrimonialista –coincidentemente nas regiões mais iletradas e mais
pobres do País— novas lideranças e novos movimentos sociais têm desafiado a
inércia social das desigualdades regionais em direção a novos horizontes de
transformação social, econômica e política. Segundo a proposta habermasiana, o
Direito, tomado como medium por
excelência do agir comunicativo em uma grande democracia constitucional como a
nossa, poderia ser destarte evocado como um aliado transformador, embora a
juridificação tenha tradicionalmente favorecido os que detêm o poder e o
dinheiro. Afinal, segundo Habermas, o Direito é o medium primário de integração social na sociedade moderna
pós-secular. Ao contrário de leituras funcionalistas, devemos partir da
existência fáctica do Direito no seio da sociedade enquanto princípio positivo
de coerção para buscar uma justificação normativo-discursiva de forma a evitar
o funcionalismo sistêmico da sociologia do direito. O Direito é, portanto,
tomado prima facie como
poder (Macht), isto é, como
instrumento coercitivo de violência (Gewalt),
sem, todavia, pressupor a sua legitimidade que só pode ser estabelecida pelo
consenso de quem se submete ao império da lei no Estado de direito (Rechtsstaat, rule of law). Daí a tensão inerente ao sistema de direitos (Rechte) do Estado democrático
constitucional moderno: do ponto de vista da autonomia pública, a facticidade
do mundo social e dos fatos sociais delimita nossa liberdade de ação
(obrigação, coação), enquanto a nossa autonomia moral procura justificar nossas
reivindicações de validade universal. Essa tensão entre faticidade e validade
reflete decerto o paradoxo moderno do Direito, já antecipado pelo princípio
kantiano do direito universal, quando buscava as condições que viabilizariam
que o livre arbítrio de um indivíduo pudesse se harmonizar com o livre arbítrio
de outrem segundo uma lei universal da liberdade. Habermas, porém, crê superar
a aporia kantiana da autonomia pública definindo-a através de uma rede
diferenciada de arranjos comunicativos para a formação discursiva da vontade e
opinião pública e de um sistema de direitos individuais fundamentais. A intenção de Habermas é articular a
autonomia privada de indivíduos que perseguem seus projetos de felicidade com a
autonomia pública que garante o bem comum, idealizado pela vontade geral
rousseauniana e pela soberania popular. Neste sentido, o intento de Habermas
coincide com o de Rawls na articulação entre a razão pública de inspiração
iluminista com a democracia deliberativa republicana. Para
Habermas, assim como Rousseau e Kant não lograram articular razão e vontade em
termos comunicativos, Rawls se contentou com a distinção entre justiça política
e moralidade, as quais permanecem, todavia, no nível da normatividade pura (Habermas,
1998, 82-84). A fim de mostrar a relação interna entre o Estado de direito e a
democracia, Habermas recorre ao conceito de política deliberativa de forma a
garantir a autonomia privada e pública de sujeitos legais dentro do próprio
processo democrático de legitimação. (Habermas, 1998, 427-446) Daí sua
apropriação do modelo procedimentalista, privilegiando os pressupostos
comunicativos e as condições procedimentais da formação democrática de opinião
e de vontade como única fonte de legitimação.(Habermas, 1998, 452-460)
Interessantemente, Habermas cita os mesmos autores que Rawls (Frank Michelman e
Joshua Cohen), ao introduzir e desenvolver sua concepção procedimentalista de
democracia deliberativa como alternativa ao liberalismo e ao republicanismo. De
resto, Habermas recorre a vários modelos normativos empíricos de democracia,
para criticá-los e oferecer sua própria leitura crítica, por exemplo, do que
ele chama "democracia deliberativa" em Joshua Cohen. Portanto, todas
as reformas políticas e estruturais têm de passar pelo Direito, que na verdade
se consituiu em "ideologia brasileira" por excelência, assim como o
idealismo alemão era tomado como a "ideologia alemã" (die deutsche Ideologie) vigente na época
do jovem Marx. Com efeito, a questão
normativa de reduzir as desigualdades sociais foi tematizada como um dos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, como descrito na
Constituição de 1988, e nos últimos anos o Governo Federal tem reiterado a
determinação constitucional de adotar a redução das desigualdades como um dos
eixos centrais da estratégia de desenvolvimento do País. Os déficits normativos
em nosso ethos democrático devem ser diagnosticados
em pesquisas interdisciplinares que viabilizem uma teoria crítica da sociedade
não apenas em seu viés sociológico, mas concomitantemente econômico, político,
jurídico, histórico, geográfico e cultural –onde decerto devemos incluir também
análises de legados religiosos, artísticos e filosóficos para a nossa formação
civilizatória.(Oliveira, 2013) Nas palavras de Jessé Souza, "Produz-se, ao mesmo tempo, no entanto, uma contradição peculiar do
nosso processo civilizatório periférico marcado pela experiência da escravidão. Por um lado, a modernização seletiva dos estratos sociais que se europeizaram
efetivamente (e não para inglês ver como percebe boa parte de nossa
historiografia), implica que a sociedade como um todo (e não apenas uma
elite má como o intencionalismo de certa má sociologia prega) perceba algumas
pessoas como valendo mais que outras. Por outro lado, a singularidade do país,
aquilo do qual ele se orgulha possuir por comparação com outras, implica a
valorização (ainda que folclorizada) precisamente do elemento não-europeizado,
afinal é apenas ele que nos permite representar como uma sociedade singular e
especial". (Souza, 2001, 132) Os desafios normativos para
implementarmos políticas públicas de desenvolvimento regional devem situar a
nossa própria autocompreensão, de nosso ethos
democrático, dentro do cenário hodierno de conjunção constante entre
globalização e democratização. Com efeito, o mundo globalizado assiste hoje,
com atônito entusiasmo, aos eventos que podem derrubar déspotas e tiranos na
maior parte dos países árabes ou islâmicos (lembrando que são conjuntos
distintos) na África, Ásia Menor e no Oriente Médio, abrindo o caminho para
novas formas de democracia. Assim como ocorrem na Tunísia, no Egito, na Líbia,
na Turquia, no Líbano e na Síria, as lutas pelo reconhecimento podem denunciar
estruturas autoritárias, regimes tirânicos e violações de direitos humanos sem necessariamente
visar a construção de um ethos
democrático –embora tal desideratum
não passe despercebido. Como nós mesmos vivenciamos e aprendemos em nosso País,
a democracia inicia com as esparsas sementes de justiça que são lançadas em
terras assoladas pela injustiça, pois a democracia, assim como a própria
justiça social, só se planta, se cultiva e se consolida pelo povo e para o
povo, de quem também emana toda aspiração soberana legítima. No entanto, as
desigualdades sociais e econômicas continuam desafiando os processos de
democratização no mundo globalizado, apesar de todas as conquistas já
alcançadas e de todos os êxitos logrados pelos ideais de justiça, liberdade e
igualdade semeados ao longo de várias décadas desde a segunda metade do século
passado. O Brasil se insere neste contexto de conjugação normativa da
globalização e da democratização, e desde o início do presente século os debates
públicos que retomam e refletem questões de normatividade ético-moral,
política, jurídica e econômica também se articulam em outros contextos
socioeconômicos e culturais. Na recepção crítica do debate filosófico
brasileiro, a questão normativa tem sido mais frequentemente explorada em
termos procedimentais, processuais ou de interesse jurídico-administrativo,
justamente pela falta de transparência, reciprocidade, igualitarismo e
imparcialidade em muitas de nossas instituições sociais e governamentais. Seguindo
os movimentos liberacionistas e de teorias da dependência, vários pensadores
brasileiros propuseram uma reconstrução da ética do discurso à luz da teoria
habermasiana da democracia deliberativa como uma transformação hermenêutica da
chamada "interpretação kantiana" do equilíbrio reflexivo de Rawls.(Oliveira,
2013) Se, por um lado, Habermas quer evitar uma redução dos agentes morais e
atores sociais a meros clientes de um sistema reificador de mundos sociais, por
outro lado, ele também procura evitar as aporias kantianas de concepções
normativas como a do equilíbrio reflexivo rawlsiano. Ademais, as formas comunicativas
desempenham, para Habermas, um papel catalizador e revitalizador da própria
concepção fenomenológico-hermenêutica de mundo da vida. Como não há
socialização humana sem razão e agir comunicativos, na medida em que estes
constituem o próprio meio para a reprodução de mundos da vida, a interação
orgânica entre consenso normativo e sistema institucional inerente a processos
decisórios de uma democracia deliberativa nos remete desde sempre a uma
correlação entre linguagem, ontologia e intersubjetividade. A pesquisa social
interdisciplinar em nosso País se insere, como já foi assinalado, num âmbito
mais amplo de questionamento filosófico, a saber, se ainda e em que medida
podemos recorrer de modo consistente e defensável a uma argumentação procedimental
como sugerem Rawls e Habermas, ou se devemos focar questões de ordem epistêmica
e científica, em pesquisas empíricas especializadas –por exemplo, na economia
política, na sociologia comportamental ou na psicologia social. O próprio Habermas logrou destarte integrar os
últimos resultados de pesquisas empíricas do naturalismo (em biogenética,
neurociências, inteligência artificial, ciências cognitivas, biologia
molecular) aos legados filosóficos e culturais tradicionalmente associados a
reflexões sobre a normatividade inerente a relações intersubjetivas do mundo da
vida. Com efeito, de acordo com Habermas, a questão da normatividade moral
(formulada pela ética do discurso) deve ser articulada com a questão social e
política da institucionalização de formas de vida, na própria concepção de um
modelo integrado diferenciando o mundo sistêmico das instituições (definido
pela capacidade de responder a exigências funcionais do meio social) do mundo
da vida (i.e., das formas de reprodução cultural, societária e pessoal que são
integradas através de normas consensualmente aceitas por todos os
participantes). A grande questão que motiva tal modelo dual da sociedade é,
para Habermas, dar conta dos complexos processos de reprodução social –material
e simbólica— em seus diversos níveis de integração social, reprodução cultural
e socialização interpessoal em face de mecanismos estruturais de controle –notadamente,
poder e dinheiro—, tais como os encontramos hoje na chamada globalização dos
mercados econômicos e financeiros e numa cosmovisão neoliberal. Habermas
procura, ao mesmo tempo, evitar um determinismo econômico (da Überbau
pela Unterbau, na terminologia marxista) e acatar as contribuições
sociológicas (em particular, de Weber, Durkheim e Parsons) para uma compreensão
dos processos de diferenciação social, cultural e política, sem incorrer em
formas sutis de funcionalismo. A hipótese de trabalho que tem guiado a nossa investigação
interdisciplinar é reexaminar em que medida tal concepção habermasiana de ethos democrático, conjugando mundo da
vida social (Lebenswelt) e sistemas
econômicos, sociais, jurídicos e políticos, logra preservar um conceito de
autonomia pública, enquanto fonte de normatividade, empoderamento (empowerment) e transformação social,
justificando a integração e diferenciação de instituições complexas e em
transformação constante nos dias de hoje, tais como a família, a sociedade
civil, o Estado e as organizações governamentais e não-governamentais, com
relação aos subsistemas econômicos, políticos, jurídicos e administrativos. Segundo Harvey, a crise do neoliberalismo hoje
mostra que o capitalismo globalizado não é mais auto-sustentável, seguindo os
princípios do acúmulo de capital e parâmetros de desenvolvimento socioeconômico
da cartilha neoliberal: estamos, pois, num momento propício para inovação e
irrupção do novum, se quisermos
evitar o autoritarismo neolibeal e o neoconservadorismo (Harvey, 2005, 188) –que
já assolam os Estados Unidos, no segundo mandato do Presidente Obama. As
reivindicações de governança democrática, de igualdade econômica, política e
cultural e de justiça social, como nos lembra Harvey, não são aspirações
utópicas de um paraíso perdido primordial ou de uma belle époque do passado. Ao contrário, pela recusa de valorações
reducionistas do imperialismo neoliberal, apregoadas por neoconservadores
americanos, podemos revitalizar os valores e práticas democráticas que resistem
ao fundamentalismo do mercado livre. (Harvey, 2005, 206) 4. Gostaria de tecer algumas
breves reflexões em torno dos aprendizados da nossa democracia brasileira,
notadamente à luz das recentes Jornadas de Junho e das manifestações que
levaram milhões de jovens brasileiros a tomar as ruas das cidades do País. Como
todos se recordam, a mobilização contra o aumento da tarifa nos transportes
públicos convocada pelo Movimento Passe Livre e as reivindicações de um
transporte público com tarifas mais acessíveis a estudantes e trabalhadores
iniciaram os massivos ciclos de protestos e manifestações que tomaram as ruas
de todo o Brasil nos últimos meses. Sobretudo nas grandes cidades, a mobilidade
urbana se tornou uma questão crucial para o funcionamento de fábricas, lojas,
comércio, escolas, hospitais e todos os organismos, estabelecimentos e
entidades públicas e privadas que empregam e prestam serviços a milhões de
pessoas diariamente. Assim como a vida urbana, o consumo e as práticas sociais
se massificaram, também aumentaram as desigualdades sociais, no mundo inteiro,
intensificando o contraste entre os desejos de quem sonha e as condições
materiais de realizá-los. Segundo David Harvey, "A liberdade
da cidade é, portanto, muito mais que um direito de acesso àquilo que já
existe: é o direito de mudar a cidade mais de acordo com o desejo de nossos
corações... A questão do tipo de cidade que desejamos é inseparável da questão
do tipo de pessoa que desejamos nos tornar. A liberdade de fazer e refazer a
nós mesmos e a nossas cidades dessa maneira é, sustento, um dos mais preciosos
de todos os direitos humanos."(Harvey, 2013, 32) Portanto, a imaginação
dialética e sua plasticidade inovadora podem nos ajudar a postular formas de desenvolvimento
sustentável para um "planeta onde favelas proliferam".( Harvey, 2013,
33) Segundo Harvey, ao "abrir a porta da imaginação humana, Marx, ainda
que tenha procurado negá-lo, cria um movimento utópico dentro do qual nossas
imaginações podem vagar e pensar em possíveis alternativas de mundos urbanos".(Harvey,
2013, 35) Harvey retoma a décima-primeira tese marxiana sobre Feuerbach para
asserir que "podemos nos transformar apenas pela transformação do mundo e
vice-versa", através do trabalho humano: somos todos arquitetos urbanos na
medida em que "nós, individual e coletivamente, fazemos nossa cidade
através de nossas ações diárias e de nossos engajamentos políticos,
intelectuais e econômicos", moldando pela imaginação e pelo desejo "nossos
futuros urbanos".(Harvey, 2013, 36) Todavia, na medida em que o
neoliberalismo vem transformando as formas de relações sociais, substituindo o
governo pela governança e a lei pelas parcerias público-privadas, culminamos
nessa crise das instituições democráticas, em que "a anarquia do mercado e
do empreendedorismo competitivo substituíram as capacidades deliberativas
baseadas em solidariedades sociais".(Harvey, 2013, 37) A fim de desafiar a
hegemonia neoliberal da nova ordem vigente, os novos atores sociais podem se
servir de estruturas de governança e até mesmo temos visto algumas "inovações
e experimentações com formas coletivas de governança democrática e de decisão
comunal" que têm emergido na cena urbana e assumido um papel
transformador. É nesse contexto que podemos situar os atuais protestos e as
manifestações populares como "direito à cidade" e como "movimento
político".(Harvey, 2013, 38) A imaginação utópica tem a ver, em última
análise, com a "grande recusa" de simplesmente aceitar o status quo e suas estruturas vigentes de
injustiça (o que Marcuse chamava de great
refusal). Portanto, mesmo que não exista plenamente –aqui no Brasil menos
ainda do que alhures—, a justiça pode ser concebida como um ideal utópico, uma
virtude social, uma ideia reguladora ou uma expressão coletiva de indignação
moral com as injustiças, desrespeitos e violações institucionais dos direitos
humanos e da dignidade humana – esses, sim, existem e sobram exemplos concretos
em nosso País, fazendo com que seja tomado nos últimos meses por manifestações
e protestos contra tais instâncias de injustiça. Embora muitos anarquistas, black blocs e manifestantes tenham
desafiado a própria ideia de governo e de representatividade em nossa
democracia (governantes e políticas que não os representam), a falta de um
programa de ação coletiva ou até mesmo de uma pauta definida de reivindicações
acabaria por mostrar que grande parte do descontentamento popular revelava
também uma certa apatia, acomodação ou conivência da população com relação a
problemas sistêmicos que se reproduziam ao longo de várias décadas, sobretudo
uma certa inércia social quanto à corrupção e à manutenção de representantes em
cargos públicos municipais, estaduais e federais. Outrossim, a crise do sistema
político representativo, a meu ver, não é apenas sistêmica (por exemplo, da
democracia representativa como tal e das inconsistências do modelo neoliberal
imposto pela globalização) mas, no caso brasileiro, como já foi assinalado, nos
remete inevitavelmente à forma como se pretende legitimar a atual forma de
governo e modelos disponíveis de governança. A crise de representatividade em
nosso ethos democrático é, com
efeito, uma crise de legitimidade que pode ser abordada pelo viés de seus
déficits normativos. Isso fica bem pontuado na formulação ambivalente da mais
típica caracterização do nosso ethos
social: o jeitinho brasileiro. Embora a noção de jeitinho brasileiro só tenha
entrado em uso corrente a partir da década de 1970, segundo Lívia Barbosa,
podemos detectar as origens do jeito no modo de ser brasileiro, tal como foi
analisado por antropólogos, sociólogos e brasilianistas, desde a publicação de Casa-Grande e Senzala, de Gilberto
Freyre, em 1933, e Raízes do Brasil,
de Sérgio Buarque de Hollanda, em 1936, até os estudos seminais de Roberto
DaMatta nos anos 1970 e 80.[7]
O jeitinho perpassa todos os segmentos da sociedade, unindo governantes e
governados, e se caracteriza por uma verdadeira solidariedade comportamental,
segundo a máxima popular do "todo mundo faz" ou pela "lei de Sarney",
senador e ex-presidente da República que defendia publicamente as trocas de
favores e barganhas políticas, lembrando –e deturpando deliberadamente— a
oração franciscana "é dando que se recebe". Ao contrário do
autoritarismo de "sabe com quem está falando?", o jeitinho brasileiro
não se limita a escamotear alguma prática implicitamente negativa, com alguma
conotação pejorativa a ser desmascarada. Pelo contrário, o jeito recorre à barganha
e à argumentação persuasiva, assume pressupostos igualitários, sendo acessível
a todos da sociedade, não dependendo necessariamente de laços ou de conexões na
sociedade mas sobretudo de atributos individuais e da personalidade, podendo
ser utilizado anonimamente. O jeitinho é, sem dúvida, um rito aglutinador, que
soma esforços para atingir determinadas metas e por essa acepção assertiva, a
expressão adquiriu um uso positivo, como se tratasse de recurso salvífico:
"dá-se um jeito" significa "isso tem uma solução". Roberto
DaMatta, que identifica o jeitinho como a nossa "atávica aversão à
impessoalidade", observa que na medida em que "damos um jeito"
encontramos uma forma alternativa de driblar a excessiva quantidade de
regulamentação, típica de nossa burocracia irracional, permitindo um rapprochement feliz entre jeitinho e
identidade nacional.[8] O
jeitinho é digno de taxonomias variadas, podendo ser classificado de maneiras distintas,
dentre as quais destacam-se três: (1) o jeitinho como uma maneira de se
resolver problemas que vão ao encontro de alguma norma, proibição ou lei, (2) como
uma dificuldade das pessoas de se verem como iguais perante as leis e (3) como
um ato próximo à corrupção, revelando a malandragem social do brasileiro. Tais concepções
híbridas que envolvem questões econômicas, políticas e culturais favorecem a
autocompreensão e a autopercepção do modo de ser brasileiro ou nossa
brasilidade em termos que transcendem as identidades regionais –por exemplo,
das culinárias tipicamente carioca (feijoada), baiana (vatapá) ou gaúcha
(churrasco)— e viabilizam uma identidade nacional unificadora, from below, ao contrário das ideologias nacionais
impostas top down, de cima para baixo,
como a disseminada "democracia racial" (seguindo os programas de
eugenia liberal e embranquecimento pós-abolição). Na genealogia do jeitinho,
identificamos nitidamente a diferenciação entre teoria e prática quanto à compreensão
e adesão a normas sociais. No Brasil é comum se dizer que "existe tal lei
X" (em teoria, no papel, num código, legislação ou até mesmo na
Constituição) mas "na prática, ninguém cumpre". Isso ficou bem
caracterizado com as mais recentes discussões em torno da chamada "Lei
Seca", Lei 11.705 de 2008, que alterava os artigos 165, 276 e 277 do
Código de Trânsito Brasileiro, segundo o Decreto 6.488, publicado em 20/06/2008,
proibindo dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância
psicoativa, de forma a refrear a violência do trânsito no Brasil. Embora quase
90% da população tenha apoiado inicialmente a Lei Seca e a rigidez das sanções
previstas (penalidades de multa de mais de R$ 950, suspensão do direito de
dirigir por um ano e apreensão do veículo), pouco a pouco houve uma
flexibilização da lei e um verdadeiro ceticismo coletivo quanto à eficácia da
lei e se tal lei iria efetivamente "pegar", se seria levada a sério
pela sociedade e pela população como um todo. Ora é de notório saber que
governantes, parlamentares ou pessoas com posição de prestígio ou poder econômico
podem se esquivar de serem enquadradas na lei, fazendo com que a sociedade se
sinta lesada e desprezada pelos governantes e legisladores que fazem leis e não
as cumprem. Num episódio recente, por exemplo, um delegado foi exonerado do
cargo em São Paulo por prender um juiz que "dirigia sem habilitação",
envolveu-se numa discussão no trânsito, foi autuado "por embriaguez ao
volante" e acusado de "desacato, desobediência, ameaça, difamação e
injúria".[9] Nesse
sentido, o jeitinho dá continuidade, do ponto de vista de seu déficit
normativo, ao estereótipo autoritário do "sabe com quem está
falando?" Lourenço Rega (2000, 103s.) descreve com propriedade a
"institucionalização do jeito" ou as quatro etapas que engendram um
verdadeiro Círculo Vicioso do Jeitinho: → DESCASO → TRANSGRESSÃO → CORRUPÇÃO → IMPUNIDADE → DESCASO → Interessantemente, não podemos
simplesmente reduzir todo o problema ao "sistema" ou aos governantes
(como pretendem alguns anarquistas e manifestantes mais reducionistas), embora
seja essa a nossa tendência natural, iniciando nossa narrativa sempre com o
descaso ou a corrupção dos governantes. Afinal, "o descaso das autoridades
públicas em relação às necessidades reais do povo" parece alimentar o
jeito, levando o povo "a se sentir no direito de transgredir as normas",
favorecendo assim práticas de suborno e estimulando a corrupção e a impunidade;
por sua vez, estas retroalimentam novas situações de descaso dos governantes
para com os governados. O nosso pacto com a corrupção é sutilmente corroborado
por um outro pacto correlato com a ineficiência e a mediocridade, que acabam
por contribuir para nossa autopercepção negativa, como se todos devêssemos
assumir uma identidade nacional da malandragem, da desonestidade e da
transgressão. Nas palavras de Rega, "...o brasileiro é, por natureza, um transgressor da lei, seja no
trânsito, no contrabando, no quilo de 900 gramas, no metro de 90 centímetros,
nas falsificações e nas mutretas. A estes fatos somam-se outros que, divulgados
pelos meios de comunicação, vão criando no povo brasileiro ojeriza contra as
autoridades, estimulando, assim, a desobediência às leis".(Rega, 2001, 106) A pergunta programática que
nos interessa agora é: como podemos, afinal, romper com esse Círculo Vicioso do
Jeitinho e resolvermos os dilemas éticos que oscilam entre usos aparentemente
mais ou menos aceitáveis do jeito brasileiro? Segundo Rega, a fim de dar um
jeito no jeitinho, devemos experienciar uma metanoia
espiritual, uma verdadeira conversão capaz de transformar as nossas práticas
cotidianas, numa espécie de revolução ético-moral que nos aproxime
constantemente do ideal normativo do mandamento divino. Mas, como vimos em
outros estudos, nenhum programa fundacionista que procura justificar a
normatividade recorrendo a um princípio absoluto parece ser sustentável do
ponto de vista argumentativo e pragmático. Assim como modelos coerentistas
podem incorrer em cetismo ético, relativismo ético-moral, niilismo ou
argumentos não-cognitivistas incapazes de justificar crenças e juízos morais,
modelos fundacionistas estão sempre sob suspeição ao assumirem como dados uma
revelação divina, um princípio absoluto, intuições ou fatos morais.[10]
Ademais, creio que a justificativa da conversão religiosa infelizmente esbarra
nas contradições da vida real, onde cristãos, evangélicos e crentes de uma
maneira geral nem sempre nos fornecem os melhores exemplos a serem seguidos
–como, de resto, nenhum grupo religioso parece poder fazê-lo. Mas fica o
aprendizado ético-moral, este, sim, me parece o caminho mais razoável e
defensável para justificar um ethos
democrático em termos normativos. Como mostrou de maneira convincente Paulo
Krischke, seguindo uma intuição de Dewey apropriada por Rawls e Habermas, a
democracia deve sempre ser aprendida pelas próprias vivências de cidadãos em um
ethos democrático, em suas práticas
cotidianas, através de suas experiências, instituições e organizações. (Krischke,
2001) Afinal, a democratização, assim como a globalização, são "processos
históricos de aprendizado de novos valores, atitudes e comportamentos
sociopolíticos que capacitam as pessoas, grupos e indivíduos a criar e a sustentar
um novo modo de vida, e novas instituições que organizem e administrem esse
mundo vivido".[11]
Assim como não podemos conceber que fuzileiros navais americanos possam ensinar
a democracia a povos não-liberais no Iraque, Afeganistão ou Síria, tampouco
podemos acreditar que há elites "democráticas" ou aristoi (os melhores, os mais sábios ou
os mais "democráticos") de uma suposta epistocracia (filósofos-reis
ou reis filósofos) que estejam habilitados, legitimados ou autorizados a nos
ensinar o que é a verdadeira democracia. Nem evangélicos republicanos nem
democratas liberais, nos Estados Unidos, nem petistas nem tucanos, no Brasil,
detêm o monopólio do verdadeiro aprendizado e ensino da democracia. A
democracia se mostra sustentável na própria sustentabilidade do povo que a
vivencia em suas práticas cotidianas e através de suas experiências,
instituições e organizações que se sustentam, perduram através de várias
gerações –daí a sua estabilidade em termos sociopolíticos, econômicos e
ecológicos. A ideia de justiça como equidade sustentável consistiria, portanto,
em preservar de maneira estável e equitativa a competitividade e os inevitáveis
conflitos, tensões e contradições inerentes a diferentes formas de vida social
numa sociedade democrática pluralista. Não poderia explorar aqui os
interessantes aspectos de uma teoria ecológica da justiça, mas concordo com
Harvey quanto ao imperativo categórico de revisitarmos nossas intuições morais
de justiça em termos de um desenvolvimento sustentável, sobretudo para levarmos
a cabo a correlação pragmático-normativa entre democratização e globalização,
dados os desafios ambientais e a urbanização massiva de nosso planeta. 5. Num artigo seminal de 1986,
Hans-Georg Flickinger introduzia no Brasil os complexos e correlatos problemas
da "juridificação da democracia" e do chamado "paradoxo do
liberalismo político".[13] Duas décadas depois, um volume e dois artigos
(com publicações simultâneas em português e alemão) aprofundavam essa
investigação, destacando aspectos jurídico-pragmáticos da paulatina
"transformação da pessoa humana em pessoa de direito", notadamente
como tal juridificação "modificaria sua avaliação social".[14] Segundo Flickinger,
trata-se de identificar e problematizar as "conseqüências oriundas da
determinação jurídico-liberal" da realidade social humana. (Flickinger,
2009, 92) Em se tratando de uma crítica imanente à democracia liberal de
inspiração hegeliana, pressupõe-se um déficit normativo na própria formulação
contratualista e individualista ou atomista de uma ideia de autonomia que se
mostra em descompasso com as condições históricas da sua época. Destarte, as
experiências e expectativas cotidianas (que equivaleriam ao que Habermas
chamaria de vivências da Lebenswelt ou
mundo vivido) não corresponderiam de maneira satisfatória aos ideais de
liberdade, igualdade e fraternidade apregoados pelos processos revolucionários
e constitucionais em termos sistêmicos ou de arranjos institucionais do Estado
de Direito. Assim, uma formulação lapidar da impossibilidade de viabilizar o
princípio rawlsiano da "igual liberdade" enquanto solução
lockeana-rousseauniana do paradoxo se cristalizaria na própria ineficácia de
uma vida comunitária esvaziada de solidariedade. Nas palavras do pensador de
Kassel: "Ao
longo da consolidação da sociedade liberal, os princípios de liberdade e
igualdade vieram assumir importância exclusiva esvaziando, passo a passo, a
demanda pela fraternidade ou, para usar um termo moderno, pela solidariedade.
Na medida em que a questão da liberdade e da igualdade via-se resolvida através
da implementação do sistema do direito liberal, a solidariedade não encontrava
mais espaço de articulação".(Flickinger, 2009, 93) À guisa de conclusão, gostaria
de fazer uma breve observação sobre a palavra ethos, que deve ser entendida em sua densidade hermenêutica,
semântico-interpretativa, suscetível de uma descrição empírico-social densa,
assim como de um inesgotável potencial normativo, tanto em suas reivindicações
espessas (thick) quanto tênues (thin), ao ponto de dificilmente
discriminarmos o que é meramente descritivo e o que é prescritivo. Mantenho a
palavra grega, ethos, lembrando que
ela foi grafada pelos pré-socráticos com êta,
êthos, na acepção de caráter ou
habitar, sendo diferenciada da sua grafia com epsilon, significando costume, mores.
Aristóteles nos lembra que ethos e êthos são correlatos, filologicamente e filosoficamente: em grego, ethos (com epsilon) significa "costume" (como encontraremos, mais
tarde, numa "metafísica dos costumes", Metaphysik der Sitten,
de Kant) e êthos
(com êta), uma forma mais antiga (como a encontramos em fragmentos
pré-socráticos), "caráter": na medida em que toda ética (êthikê)
pressupõe instituições sociais, políticas, jurídicas, através das quais são
cultivados virtudes e valores morais, a ética é correlata à política (politikê).
Mesmo os utilitaristas e contratualistas (portanto, não apenas os
comunitaristas, mas até mesmo liberais e universalistas tachados de individualistas) reconhecem que a ética é correlata a uma
dimensão coletiva, social (da comunidade, das tradições e instituições sociais,
políticas e econômicas). Hobbes, Locke, Mill, Rousseau, Kant, Hegel são alguns dos
pensadores morais que propuseram diferentes modos de justificar filosoficamente
a moral e relacioná-la com a política e com a dimensão social da existência
humana. Assim, antes mesmo da concepção aristotélica de
hábito ou virtude a ser cultivada na formação do caráter de um indivíduo ou de
um povo, o famoso fragmento de Heráclito já estava "carregado" dessa
densidade empírico-normativa: ethos anthropo daimon (Fragmento
119), "o caráter próprio ao ser humano é o seu destino", ou segundo a
tradução de Martin Heidegger,
"a habitação (o familiar) é para o homem o aberto para a presentificação
do deus (o não-familiar)"[15]. Em termos ecológicos,
econômicos e sociológicos de sustentabilidade, pode-se traduzir: "o habitar
de forma não instrumental, poiêsis, a
Terra desvela a verdadeira destinação do modo humano de ser e sua
autocompreensão existencial, histórico-temporal, na medida em que o êthos
humano é uma praxis correlata ao pensamento da technê, epistêmê,
theôria e poiêsis".[16]
Tal concepção ético-ambientalista pode ser combinada com a intuição
hegeliana de uma eticidade (Sittlichkeit)
densa, carregada de significações socioculturais e ético-normativas que precedem
quaisquer concepções idealizadas e secularizadas de autonomia, soberania e
liberdade, e que serviria para balizar a crítica imanente ao modelo
jurídico-liberal, partindo das próprias limitações e contradições de uma
estrutura de "auto-referência e autodeterminação", conforme o modelo
que Habermas e Honneth apropriam de Hegel e Marx. Em minha investigação do
problema correlato do déficit normativo do ethos
democrático brasileiro à luz de concepções tão ambíguas quanto promissoras,
tais como a juridificação (Verrechtlichung) e a secularização (Säkularisierung), creio que o
construtivismo político-liberal (Rawls) e a reconstrução pragmático-normativa
(Habermas) podem ser reformulados, em equilíbrio reflexivo amplo, num
construcionismo social fraco capaz de integrar a objetividade exigida em
análises empíricas com a normatividade ético-moral reivindicada pelos processos
de democratização no Brasil atual.[17] Destarte me parece possível enfrentar os desafios do relativismo
cultural e da pluralidade de contextos semânticos intersubjetivos, sem abdicar
de uma concepção de normatividade, embora não-absolutista e não-idealizada, com
a ajuda de novas interfaces que podem abranger diferentes abordagens
naturalistas e cognitivas nas ciências empíricas. Assim, o próprio aprendizado da
democracia e infindáveis debates em torno do que significa, afinal, sermos o
que somos e termos as expectativas normativas que temos em nosso ethos social nos motivam a prosseguir
engajados em discussões e debates na esfera pública sobre os efeitos
globalizantes no mundo do trabalho, da produtividade e da reprodução social. Referências: BRANDÃO, Carlos. "Estruturas, hierarquias e
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Ricardo Leis et ali. (orgs.) Modernidade
crítica e modernidade acrítica. Florianópolis: Cidade Futura, 2001, p. 117-132.
[12]
Notas:
[1]
Agradeço o convite que me foi feito pelos Professores Virginia Etges e Silvio
Arend, do PPG em Desenvolvimento Regional da UNISC, para participar do
seminário internacional sobre "Crises do Capitalismo, Estado e Desenvolvimento
Regional", neste painel sobre "Governança: Equidade X
Competitividade".
[2] Bob Davis, "What's a Global
Recession?", The Wall Street Journal,
22 April 2009, disponibilizado em <http://blogs.wsj.com/economics/2009/04/22/whats-a-global-recession/>.
Acessado em 21 setembro 2013.
[3] Karl Marx, "Teses sobre Feuerbach". In: Karl Marx & Friedrich Engels, A Ideologia Alemã. 6a. ed. São Paulo: Moraes,1987, p. 128.
[4]
E.P. Thompson, A
Miséria da Teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981 [1978]; Jürgen
Habermas, Para a Reconstrução do Materialismo Histórico. Trad. Carlos
Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1990 [1976].
[5] Ernst Bloch, Geist der Utopie. München & Leipzig: Duncker & Humblot, 1918.
[6] Cf. J. A. Giannotti, "Contrato e
Contrato Social". Filosofia Política
6 (1991): p. 9-29; J. C. Brum Torres,
"Discutindo a Lei de Gérson". In: Valério Rohden (org.), Racionalidade e Ação: Antecedentes da
Filosofia Prática Alemã. Porto Alegre, Ed. Goethe-Institut, 1992, p.
165-178; N. Boeira, "Sobre a deliberação em questões públicas". In:
Nythamar Fernandes de Oliveira e Draiton Gonzaga de Souza (orgs), Justiça e Política. Homenagem a Otfried Höffe.
Porto Alegre: Edipucrs, 2003. p. 47-73.
[7] Lívia Barbosa, O jeitinho brasileiro: A arte de ser mais igual do que os outros.
Editora Campus, 1992.
[8] Roberto DaMatta, O que faz o Brasil, Brasil. 2a. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 98-99.
[9] André Caramante, "Delegado que
prendeu juiz é exonerado do cargo em São Paulo", Folha de São Paulo 28/12/2011, disponibilizado em <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1027172-delegado-que-prendeu-juiz-e-exonerado-do-cargo-em-sao-paulo.shtml>.
Acessado em 15 outubro 2013.
[10] N. de Oliveira, "Recasting the naturalism-normativity debate: Neuroscience, Neurophilosophy, Neuroethics", Principios (2013): 212-231.
[11] Paulo Krischke, "Aprender a Democracia na América Latina. Notas sobre o Aprendizado Político e as Teorias da Democratização", in Hector Leis et al., Modernidade Crítica e Modernidade Acrítica. Florianópolis: Cidade Futura, 2001, p. 9.
[12] David Harvey, Justice, Nature and the Geography of Difference. Oxford:
Blackwell, 1997. Agradeço a indicação dessa importante obra ao Professor Carlos
Brandão.
[13] H.-G. Flickinger, "O paradoxo do liberalismo político: A juridificação da democracia". Filosofia Política 3 (1986): 117-129.
[14] H.-G.Flickinger, Em Nome da Liberdade: Elementos da crítica ao liberalismo contemporâneo.
Porto Alegre: Edipucrs, 2003; "Im Namen der Freiheit. Über die
Instrumentalisierbarkeit der Menschenrechte", Deutsche Zeitschrift für Philosophie 54/6 (2006): 841-852.
[15] M. Heidegger, "Carta sobre o humanismo". Os Pensadores. Trad. E.J. Stein. Editora Abril, 1983.
[16] N. de Oliveira, Tractatus ethico-politicus. A Genealogia do Ethos Moderno. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. Cap. 1.
[17] N. de Oliveira, "Mundo da Vida, Ethos Democrático
e Mundialização: A Democracia Deliberativa segundo Habermas", DoisPontos
5/2 (2008): 49-71; "Habemus Habermas: O Universalismo Ético
entre o Naturalismo e a Religião", Veritas 54/1 (2009): 217-237.
Related Links:
Neurophilosophy Seminar at PUCRS
Critical Theory Seminar at PUCRS
Instituto do Cérebro : InsCer
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